quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Textos sobre preservação audiovisual


Meu envolvimento com a preservação audiovisual sempre foi mais profissional do que acadêmico, e minha atuação no campo mais política (em fóruns e entidades de classe) do que intelectual (em sua manifestação escrita). Assim, escrevi poucos textos sobre preservação, apesar de ter feito muitas palestras e conferências e dado vários cursos e oficinas ao longo dos últimos anos. Um texto que propunha uma reflexão sobre o tema foi "A origem dos filmes: introdução sobre os conceitos de obra, material e cópia no universo das imagens em movimento". Mas a maioria do que escrevi aliava a preservação à história do cinema brasileiro, como “Algumas considerações sobre o cinema brasileiro da década de 1930” (catálogo da 5.CineOP, 2010) e “A preservação do cinema brasileiro da década de 60: ações e lacunas” (catálogo da 7.CineOP, 2012). Já o texto “Cinematecas e Universidades” foi produzido a partir da participação em um evento acadêmico na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, em 2010.

O único artigo verdadeiramente acadêmico que escrevi foi “Acervos documentais de arquivos audiovisuais” (publicado em HAMBURGUER, Esther; SOUZA, Gustavo; MENDONÇA, Leandro; AMÂNICO, Tunico (orgs). Estudos de Cinema SOCINE. São Paulo: Annablume: Fapesp: Socine, 2008).
Todos esses textos estão no meu blog preservação audiovisual - incluindo outros escritos especialmente para o blog, como "Subsídios para uma história recente da Cinemateca do MAM" - mas havia um pequeno artigo que permanecia inédito na internet, tendo sido publicado originalmente no livro organizado por Adriana Fresquet e Márcia Xavier "Novas imagens do desaprender" (Rio de Janeiro: Booklink: CINEAD-LISE-FE: UFRJ, 2008).
Tanto o artigo "Acervos documentais de arquivos audiovisuais" quanto "A documentação diversa em arquivos de filmes: uma rotina movida a paixão" tratam do tema da documentação correlata e estavam diretamente ligados ao meu trabalho enquanto Coordenador de Documentação na Cinemateca do MAM-RJ.


A documentação diversa em Arquivos de filmes: uma rotina movida a paixão


A paixão pelo cinema frequentemente não se esgota no tempo de duração da projeção de um filme, mas prossegue enquanto seus sons e as imagens, assim como seus sentidos e os sentimentos permanecem em nossas lembranças. Da mesma forma, o desejo de compreensão e conhecimento a respeito de uma obra audiovisual não se restringe somente à visão daquela própria obra. Há todo um universo que circunda não somente os filmes, mas o cinema como um todo, e que somente pode ser descoberto através de outros materiais além do rolo de película, da fita de vídeo, do DVD ou do arquivo digital.
O papel do que podemos chamar justamente de “documentação diversa” dentro de um arquivo de filmes, ou seja, todo tipo de documentação relativa à atividade audiovisual que não as próprias obras audiovisuais, não se resume a uma função meramente acessória. Apesar dos arquivos de filmes e das cinematecas se distinguirem das demais instituições de guarda como as bibliotecas, museus e arquivos principalmente pela natureza específica dos materiais aos quais dedicam seu trabalho – obras audiovisuais registradas em películas cinematográficas, fitas magnéticas, discos óticos ou em qualquer outro suporte existente ou que venha a ser inventado –, a documentação “não-fílmica” também é parte essencial de sua atividade.
Esse aspecto já podia ser observado no histórico documento redigido pela UNESCO em 27 de outubro de 1980 – A recomendação pela salvaguarda e conservação das imagens em movimento –, em que uma das medidas técnicas recomendadas era “coletar, conservar e tornar disponíveis, com fins de pesquisa e investigação, registros institucionais, documentos pessoais e outros materiais que documentem a origem, a produção, a distribuição e a projeção de imagens em movimento”.
Como parte fundamental do trabalho de arquivística audiovisual, o esforço dedicada a “outros materiais” também foi ressaltado na ata de fundação da ABPA – Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, primeira entidade representativa do setor criada recentemente em Ouro Preto, em 16 de junho de 2008, que ressalta como uma das funções e deveres de seus associados a preservação de “todo o conjunto de documentos, conceitos, técnicas e tecnologias” associados aos documentos audiovisuais.
A importância dessa documentação está ligada, por exemplo, ao fato de que muitas informações essenciais sobre uma obra audiovisual não podem ser resgatadas através da análise da obra em si, mas somente através de outros documentos, como por exemplo, datas de produção e lançamento. Roteiros, planilhas de produção, folhas de continuidade e diários de filmagem, por exemplo, trazem informações essenciais sobre a concepção de obras, como também sobre obras que nunca se concretizaram como o realizador as concebia. No Setor de Documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro temos inúmeros exemplos de documentos que elucidam o processo de criação de determinados filmes, como o roteiro datilografado, mas cheio de anotações manuscritas de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), os cuidadosos estudos de cenário e figurino de época de A ópera do malandro (Ruy Guerra, 1985), ou os fartos materiais de pesquisa para o filme Lamarca (Sérgio Rezende, 1994). Outros documentos trazem informações sobre filmes que se transformaram ao longo do processo de produção (como resultado, por exemplo, dos diversos cortes assinalados em alguns certificados de censura) ou que nunca chegaram a ser realizados (por exemplo, o roteiro inédito de Estouro na praça, de Alex Viany e Alinor Azevedo, que teria sido o melhor filme do realismo carioca dos anos 1950, segundo previsão glauberiana em Revisão crítica do cinema brasileiro).
Essa documentação é responsável também por retornar as obras ao contexto em que foram realizadas, fornecendo dados sobre sua recepção em diversos momentos de sua trajetória, de seu lançamento a exibições posteriores, sendo essenciais para uma história sócio-cultural do cinema. Críticas publicadas em jornais ou revistas especializadas nos revelam como muitos filmes hoje considerados clássicos foram duramente recebidos por jornalistas especializados em suas estréias, assim como obras aclamadas em suas épocas são frequentemente relegadas ao esquecimento pela ação do tempo.
Se a película cinematográfica com a qual o cinema escreveu grande parte de sua história inicial revelou-se de vida efêmera, sobretudo em países com clima tropical e costumeiro descaso com sua memória como o Brasil, frequentemente encontramos informações únicas sobre filmes já desaparecidos em fontes alternativas. Se absolutamente nenhum fragmento de toda a produção cinematográfica brasileira realizada entre 1898 e 1909 sobreviveu até os dias de hoje, as informações que temos sobre esse período fundamental da história do nosso cinema foram conseguidas em jornais, revistas, livros e depoimentos. O acaso muitas vezes ajuda, como na descoberta de um ingresso para o famoso Salão de Novidades Paris no Rio, um dos primeiros locais dedicados à exibição regular do cinematógrapho no Rio de Janeiro, esquecido dentro de um livro pertencente à biblioteca de Ruy Barbosa e provavelmente deixado lá pelo próprio. 
Essas felizes surpresas ocorrem de tempos em tempos na rotina de alguém que trabalha no setor de documentação de uma cinemateca, e eu mesmo posso descrever experiências pessoais da descoberta fortuita de um cartaz raro guardado dobrado dentro de um livro ou de uma carta manuscrita de um reconhecido cineasta esquecido junto com materiais de divulgação que iriam para o lixo.
Entretanto, o dia a dia em um arquivo é feito menos de acontecimentos extraordinários, e mais de um de trabalho repetitivo e cansativo de acondicionamento, classificação e guarda dos mais variados tipos de documentos. A grande parte do tempo não é dedicada a materiais raros, antigos ou de filmes e personalidades prestigiados, mas sim ao tratamento do que é produzido correntemente na atualidade, visto geralmente como coisas banais e descartáveis. Dividindo-se entre o passado que ainda não foi preservado (o drama das caixas e caixas fechadas aguardando tempo e disponibilidade dos funcionários), e o presente que deve ser capturado antes que desapareça (a tragédia das pilhas que crescem e se acumulam em nossas mesas), a sensação de angústia é inevitável frente a um trabalho cujo ideal é utópico e cuja realidade é sempre penosa. A falta de equipe treinada e em número suficiente, de equipamento adequado, de infra-estrutura apropriada e de insumos em quantidade necessária são problemas recorrentes e quase crônicos. Num trabalho que historicamente foi feito menos por especialistas na função (arquivistas), e mais por amantes do objeto de trabalho (o cinema), sem que isso tenha implicado menor rigor ou competência, a paixão é a principal força que move aqueles que passam seu tempo soterrado por impressos, fotos, cartazes, releases, jornais e revistas, num esforço de preservar justamente “aquilo com o qual os sonhos são feitos”, como uma vez disseram Humphrey Bogart e Shakespeare.

Rafael de Luna Freire
Coordenador de Documentação da Cinemateca do MAM-RJ e Professor de Preservação, Memória e Políticas Audiovisuais do Curso de Cinema e Audiovisual da UFF.




sábado, 5 de outubro de 2013

Plínio Marcos

Hoje fico surpreso ao notar que minhas pesquisas sobre Plínio Marcos e o cinema brasileiro se arrastaram, de certo modo, por quase dez anos. Ela começou ainda na monografia de conclusão da graduação em cinema, sobre as refilmagens no cinema brasileiro dos anos 1990, na qual um dos capítulos comparava as duas adaptações da peça de "Navalha na carne", o filme de Braz Chediak de 1970 e o de Neville D'Almeida de 1997. Esse capítulo da monografia apresentada em 2002 acabou sendo reescrito e publicado como o artigo "O silêncio (e as canções) que precede(m) o esporro" (Cinemais: revista de cinema mais outras questões audiovisuais, Rio de Janeiro: Aeroplano, n.38, jan-mar 2005, p. 8-41). Infelizmente a finada revista Cinemais nunca foi digitalizada e nem está na internet.

Além de fazer parte do meu projeto experimental de conclusão de curso, essa pesquisa inicial serviu para preparar meu projeto de mestrado na UFF, com o título "O teatro de Plínio Marcos e o cinema: amor e ódio", selecionado no final de 2004. Ao longo de dois anos, escrevi a dissertação de 500 páginas (!), intitulada "Atalhos e quebradas: Plínio Marcos no cinema brasileiro". Nesse texto, eu iniciava com uma introdução sobre os conceitos da adaptação. O primeiro capítulo era uma síntese biográfica sobre Plínio Marcos (não havia então nenhuma biografia publicada sobre ele). O segundo capítulo era sobre as relações entre teatro e cinema no Brasil e, então, seguiam-se capítulos sobre os filmes A navalha na carne (dir. Braz Chediak, 1970), Dois perdidos numa noite suja (1971, dir. Braz Chediak), Nenê Bandalho (dir. Emilio Fontana, 1971), A rainha diaba (dir. Antônio Carlos Fontoura, 1974), Barra pesada (dir. Reginaldo Farias, 1977). O último capítulo refletia conjuntamente sobre uma “retomada” de Plínio Marcos pelo cinema brasileiro a partir da década de 1990 com as adaptações Barrela: escola de crimes (dir. Marco Antônio Cury, 1994), Navalha na carne (dir. Neville D’Almeida, 1997) e Dois perdidos numa noite suja (dir. José Joffily, 2003).
A dissertação foi muito bem recebida e pode ser baixada aqui.

Após a defesa, elaborei um projeto para a realização de uma mostra de cinema sobre o tema da minha pesquisa, que foi realizada em fevereiro 2008 na Caixa Cultural. Como curador e produtor da mostra "Navalha na tela: Plínio Marcos e o cinema brasileiro", decidi revisar e expandir minha dissertação para publicá-la como "catálogo" da mostra. Certamente esse foi um dos eventos cinematográficos cariocas pioneiros na transformação do catálogo em um verdadeiro livro, com ISBN, ficha catalográfica e tudo o mais. Nessa revisão, cortei a parte teórica e contextual do início da dissertação, além de um trecho interessante no qual eu analisava as características da obra teatral e literária de Plínio Marcos. Por outro lado, revisei e expandi a pesquisa, criando novos capítulos para os filmes mais recentes, que receberam análises mais detidas, incluindo Querô (dir. Carlos Cortez, 2007), lançado após eu ter defendido minha dissertação. A programação da mostra, que contou com três debates e uma homenagem histórica, pode ser vista aqui.

Do livro "Navalha na tela: Plínio Marcos e o cinema brasileiro" foram impressos 700 exemplares distribuídos gratuitamente aos espectadores da mostra, além de doados para bibliotecas, cinematecas e universidades de todo o Brasil. Por questões contratuais, o livro não podia ser comercializado, embora hoje possa ser encontrado em sebos.

Além desse livro, a pesquisa da dissertação resultou em outros textos. A parte da contextualização histórica da relação entre teatro e cinema brasileiros (relativamente fraca, vista dos dias de hoje) virou um artigo para a revista virtual Moviola "O theatro e o cinematographo", em junho de 2008, podendo ser vista aqui.

Já a parte teórica sobre adaptações cinematográficas resultou num artigo acadêmico escrito junto com o meu colega de pós-graduação, hoje professor da UFPB, Marcel Vieira Barreto Silva, intitulado "Sobre uma sociologia da adaptação fílmica: um ensaio de método", publicado na revista Crítica cultural, da Universidade do Sul de Santa Catarina (v. 2, n.2, jul/dez. 2007). 

Eu explorei esse mesmo tema num artigo para a mostra "Memórias cinematográficas de Machado de Assis", do amigo Eduardo Ades, realizada na Caixa Cultural em 2008, intitulado "Machado de Assis no reino das adaptações" (o site do evento está temporariamente fora do ar).

Além de artigos especificamente sobre algumas das adaptações estudadas e seus realizadores (Emílio Fontana, Jece Valadão etc.), a pesquisa sobre Plínio Marcos resultou em três artigos que expandiam algumas das questões tratadas na dissertação e no livro da mostra.

Um deles, que eu gosto muito até hoje, é "Plínio Marcos e Ozualdo Candeias: marginal e maldito", no qual eu traço relações entre o "autor maldito" e o cineasta consagrado pelo filme A margem (1967), um dos marcos do chamado cinema marginal. Esse artigo foi publicado no livro Estudos de Cinema Socine. São Paulo: Annablume: Socine, 2007, que recebeu uma segunda edição digital que pode ser vista aqui.

O segundo artigo é “Na minha vida mando eu”: o estereótipo do homossexual masculino nos filmes A navalha na carne (1969) e A Rainha Diaba (1974), publicado na Revista Galáxia, PUC-SP, em 2009. Nesse texto eu trato mais especificamente dos personagens Veludo e Diaba desses dois filmes, trazendo uma leitura informada por Robert Stam, Ella Shohat, Richard Dyer, entre outros teóricos. Na verdade, o artigo foi o trabalho final de uma disciplina cursada em meu doutorado e baseada no livro "Crítica à imagem eurocêntrica".

O terceiro artigo é "Esqueceram de alguém nos quarenta anos de 1968: Plínio Marcos no teatro e no cinema, ontem e hoje", publicado na revista da UNESP, Baleia na Rede, em 2009.

Depois da realização da mostra "Navalha na tela: Plínio Marcos e o cinema brasileiro", eu ainda sentia que havia questões a expandir no texto que havia sido publicado, inclusive por muito do que foi dito nos debates organizados para o evento, como o que reuniu o elenco original da primeira montagem de Navalha na carne, os atores Nelson Xavier, Emiliano Queiroz e Tonia Carrero. Além disso, havia encontrado novos materiais de pesquisa, como os documentos sobre Plínio no DOPS do Rio, no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Por fim, havia ainda a publicação de "Bendito Maldito: uma biografia de Plínio Marcos", escrita por Oswaldo Mendes, que tinha usado muito do que eu escrevera no "Navalha na tela", mas expandira muito mais o conhecimento sobre a vida do autor.

Por esses motivos e pelo fato do catálogo da mostra na Caixa Cultural ter sua circulação limitada, resolvi fazer uma terceira e última versão da pesquisa. Essa versão foi intitulada "Incomodando quem está sossegado: a obra de Plínio Marcos no teatro, literatura e cinema", sendo publicada em 2011 pela editora Multifoco com pouquíssimos exemplares. Apesar de poder ser vendida livremente, inclusive pela internet, o livro encontrou uma difusão muito mais restrita do que a dissertação e até mesmo do que o catálogo da Caixa Cultural. De qualquer modo, com esse trabalho eu finalmente pude por um ponto final nessa longa pesquisa sobre a fascinante obra do autor santista.  

Encontro marcado: Arnaldo Jabor e Nelson Rodrigues, texto de 2007

Por conta da minha pesquisa de mestrado, me interessei pelas relações entre teatro e cinema brasileiros, especialmente as adaptações cinematográficas de peças teatrais. Embora meu foco sempre tenha sido Plínio Marcos, também cheguei a escrever sobre as versões de textos de Nelson Rodrigues. Este artigo foi escrito para o catálogo da mostra "Arnaldo Jabor: 40 anos de opinião pública", dos amigos Eduardo Ades e Mariana Kaufman, no Centro Cultural Banco do Brasil em 2007. Gosto desse texto que nunca foi disponibilizado na internet.



Encontro marcado: Arnaldo Jabor e Nelson Rodrigues.

Ao longo de apenas quatro anos, entre 1962 e 1966, foram lançados nos cinemas seis longas-metragens adaptados de quatro peças e de um folhetim (transformado em romance) de Nelson Rodrigues, no que ficou conhecido como o primeiro ciclo rodriguiano no cinema. Apesar da variedade de propostas, todos esses filmes realizados por diferentes cineastas e produtores compartilhavam a intenção de alcançar o grande público através da fama do polêmico dramaturgo e da mistura de ousadia e sensacionalismo, adaptando sua obra então recente e comercialmente bem sucedida produzida entre 1959 e 1962.
Depois dessa primeira fase, a ausência de Nelson Rodrigues das telas coincidiu com reviravoltas na situação política do país:  o acirramento dos conflitos após o golpe de 1964, a decretação do AI-5 e a fase de maior violência da repressão, quando o dramaturgo chegou a ver seu filho, militante do MR-8, ser preso por agentes do regime militar que ele apoiava explicitamente. Já estávamos nos anos 70: o milagre econômico anestesiava grande parte da classe média e a juventude se via às voltas com a revolução comportamental.
Nesse mesmo período, o cinema brasileiro não deixou de passar por um momento de redefinições. O Cinema Novo, que ainda se debatia entre a análise do golpe e seus encontros e desencontros com o público, seria atropelado por uma nova geração capitaneada pelos jovens pais de um Cinema Marginal. E ambos comeriam a poeira de Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968) e Os paqueras (1969), fenômenos de bilheteria do cinema jovem dos irmãos Reginaldo e Roberto Farias. Em São Paulo surgia a Boca do Lixo enquanto no Rio e em Brasília produtores e militares gestavam a Embrafilme.
Saltaram às telas bundas e peitos coloridos margeados por lixo e vômitos em preto e branco. Para ambos as tesouras dos censores e a escassez crescente das salas de cinema. Se os militares afirmavam defender o Brasil da importação cultural imperialista e se apropriavam do projeto “nacional-popular”, que rumos se apresentavam? O público (o povo convertido em consumidor) se tornou o termômetro: ele quer se ver na tela; ele quer entender os filmes; ele quer qualidade (mas se vai ver pornochanchada, ele é burro e não conta).
Justamente neste delicado momento, o cineasta Arnaldo Jabor retomou a trajetória de Nelson Rodrigues no cinema. Depois do completo fracasso de seu Pindorama (1970) – produção da Vera Cruz e distribuição da Columbia Pictures –, o cineasta adaptou a última peça então escrita por Nelson Rodrigues e encenada no já longínquo ano de 1965. Quando Cleyde Yáconis, no papel de Geni, dizia nos palcos “perto de você eu fico molhadinha”, a platéia do Teatro Serrador ainda podia estremecer, mas milhões de espectadores de cinema já tinham visto o desfile de seios patrocinado por Jece Valadão em Boca de Ouro (1962) ou o Fregolente lascivo e de toalha em Bonitinha, mas ordinária (1963). Em 1973, Jabor não economizou nos palavrões ou na nudez de Darlene Glória: isso não era mais a novidade, embora ainda estremecesse os militares, que chegaram a censurar até o ladrão boliviano! Era justamente essa contradição – da peça e do Brasil – que interessava ao cineasta.

Toda nudez será castigada
O principal conflito da peça de Nelson Rodrigues é a oposição entre dois pólos (vida e morte, dia e noite, comunhão e solidão), com Geni (Darlene Glória) de um lado,  e do outro, Herculano (Paulo Porto) e sua “família só de tias”. O personagem de Patrício (Paulo Cezar Pereio), cliente da primeira e irmão do segundo, é quem faz a ligação entre esses dois universos, conduzindo a tragédia do primeiro ao último ato.
No filme de Arnaldo Jabor, Patrício se despede cedo (embora Pereio, de pijamas, cabelo desgrenhado e coçando o saco, roube as primeiras cenas) e é o próprio filho de Herculano, Serginho (Paulo Sacks) – na peça apenas marionete do tio rancoroso – quem assume a responsabilidade por seus atos. Da descoberta no exame da cueca do pai que “seu desejo pinga”, passando pelo pedido para que Geni se torne sua madrasta, até a revelação para a amante de sua fuga com o ladrão boliviano, todos os atos passam a ser engendrados por um Serginho responsável por suas ações.
Desse modo, na versão cinematográfica de Toda nudez será castigada não só o drama de Geni assume o centro, como se articula mais explicitamente um triângulo amoroso, cujos vértices são o pai, o filho e a prostituta. Diferentemente da peça, o filme de Jabor articula abertamente paralelismos entre o pai e o filho em que ambos tentam, cada um à sua maneira, escapar da decadência irrefreável de valores caducos e normas sociais ultrapassadas, vendo em Geni uma possível tábua de salvação.
Na primeira parte do filme, somos confrontados com um Herculano dividido entre o luto pela viuvez recente e a arrebatadora paixão pela prostituta. Embora claudicante, ele consegue se libertar da memória da falecida esposa, mas não do peso da família, com figuras simbolizando o passado e a tradição (as tias), a possibilidade de desvio (Patrício) e a continuidade das normas (Serginho). Seu destino é continuar onde sempre esteve: viúvo no início, novamente viúvo no final. 
Desajeitadamente conciliatório, Herculano ainda tenta criar um paraíso escondido numa mansão, onde como Adão e Eva, nus em meio ao jardim, ele e Geni se amam num éden tropical. Mas se sexo é amor, como tentou justificar para o filho no encontro no cemitério, ele não deixa de ser pecado. É exatamente na visão do pai em pleno ato que o filho, puro como um anjo da morte, cai definitivamente. Se Serginho era “impotente como um santo”, a perda da castidade no estupro que se segue implica na capacidade de ereção. Suavizada a analogia de Caim e Abel da peça original em favor de outro drama bíblico no filme, é mordendo uma maçã e desperto pelo desejo, que Serginho manda Geni tirar a roupa no quarto do hospital, tendo a idéia de sua vingança contra o pai.
Esse aspecto ganha força no filme de Jabor ao mostrar o que na peça de Nelson Rodrigues era elipse. A seqüência das núpcias de Herculano com a noiva tornada virgem, num aposento decorado com lençóis e rosas brancas e iluminado pelo sol, é contraposta à versão noturna da cena, em que a prostituta experiente inicia sexualmente Serginho num quarto escuro e avermelhado como o inferno.
Entre Deus e o Diabo, Geni apanha dos dois lados. Em diferentes momentos, pai e filho esboçam o ato de esganar a prostituta, ao que ela responde, em ambos os casos, com seu arrebatador e irresponsável desejo. A prostituta é uma ingênua que aguarda seu príncipe encantado no quarto de bordel onde o castelo só existe no pôster da parede. Sufocada pela culpa, ela não quer um príncipe para buscá-la, mas para ser salvo por ela. Geni, coisificada por profissão, quer ser sujeito da ação e não objeto, mas disso ela não passa, retomando a figura vitimizada da prostituta trágica. [1]
Como já apontou Ismail Xavier[2], Serginho é um personagem ambivalente, tanto agente da tradição (tendo Geni como sua principal vítima), quanto também pólo de subversão da própria família (atingindo seu pai). Entretanto, não se trata de uma vitória de Serginho sobre a autoridade patriarcal, já desautorizada, e com a qual o espectador poderia se identificar – ainda mais pela resignificação pela qual o homossexualismo passou da época da peça para a do filme. [3] Trata-se sim da exploração do mais fraco (a prostituta) pelo mais forte (a família) e de sua tentativa egoísta e inescrupulosa para escapar da decadência do universo cujas entranhas Nelson Rodrigues inúmeras vezes revelou, e cujas críticas foram reapropriadas por Arnaldo Jabor em um momento político do país marcado pela hipocrisia moral que resguardava o projeto conservador em marcha.
 Além do retrato amargo da “Tradição” (decadente e anacrônica) e da “Família” (hipócrita e repressora), a palavra que faltava para completar o trinômio surge na exploração da prostituta, tornada “Propriedade”, mais um dos objetos guardados na mansão a ser utilizado e descartado. Desse modo, através da crítica ao universo do privado, das emoções íntimas, no filme Toda nudez será castigada se articula a crítica social com o esboço da luta de classes, opondo as duas faces de uma mesma moeda do explorador ao personagem explorado. E como afirma o dito popular, a corda sempre arrebenta no lado mais fraco.
Não é coincidência que as principais imagens de tom documental, mais “autênticas”, e logo, mais respeitosas – afora as tomadas feitas nas ruas dentre os pedestres – são do universo diametralmente oposto ao de Herculano (“o melhor partido do país”) e de seu herdeiro. São no bordel e na cadeia – destacados pela adaptação de Jabor – que pai e filho encontram suas “salvações”, a princípio indesejadas e traumáticas (no porre de um, na prisão de outro), mas depois atraentes e irresistíveis. A prostituta apaixonada e o ladrão boliviano representam o colorido que se opõe ao negro do luto.
No texto de Nelson Rodrigues, o estupro de Serginho não é mostrado. Segundo o relato da tia, ele entrou num botequim, bebeu pela primeira vez e se envolveu numa briga. Levado em cana pela polícia, foi estuprado pelo único companheiro de cela, um ladrão boliviano. Jabor ilustra esse trecho em duas cenas. Na primeira, tem-se um “pé sujo” onde dois homens bebem cerveja. No discurso de um deles – pobre, negro, sujo e embriagado –, comentários sobre futebol se misturam ao rancor antiburguês e moralista. Quando Serginho surge no bar, antes mesmo de beber um copo de cerveja, ele é provocado pelo tal homem: “Olha aí: bicha! Roupa grã-fina, roupinha nova, roupa de mulher”. O homem trata de se diferenciar como trabalhador em relação àquele “estranho”: “Porque eu sou um cara que trabalha há 20 na Leopoldina...”. Ambos começam a discutir e enquanto Serginho grita se afastando histericamente (“tira a mão de mim!”), o outro diz, trôpego: “O que falta em vocês é religião!”. Assim como Herculano tem nojo do bordel de Geni, Serginho expressa o completo asco daquele lugar. Mas é para o puteiro e para o boteco que ambos fogem nos momentos de crise.
Colocado na cadeia depois da discussão no bar, Serginho se destaca dos demais presos numa situação que remonta imediatamente ao momento-chave da peça Barrela. Entretanto, não se reproduz o tom ameaçador do texto de Plínio Marcos, apesar do medo de Serginho. É isolado no canto exatamente oposto da cela que outro personagem singular se levanta: o ladrão boliviano. Mais forte e decidido do que os demais presos, ele avança na direção do garoto. Trata-se do encontro entre dois estrangeiros em que o povo, passivo, apenas acompanha sem participar: é um coro que promove um carnaval.
            Membros de uma família confinada a interiores, de casas fechadas com grades nas janelas, Herculano e Serginho buscam em Geni, sempre voltada para a luz, a abertura para o mundo. A prostituta é usada para iluminar a vida mofada, retirando os lençóis por cima dos móveis da velha mansão como quem espanta fantasmas adormecidos. Entretanto, é envolta por um desses mesmos lençóis brancos, transformando-se ela própria numa assombração salpicada de sangue, que ela encontra a morte.  Irremediavelmente preso à tradição, Herculano tentara incorporar precária e fingidamente a prostituta à normalidade burguesa, mas não isso não era possível. Já Serginho – fruto de uma nova geração menos hipócrita e mais cínica –, consegue se libertar do passado, mas não encontra alternativa além da fuga. Sua abertura para o mundo está no aeroporto.

O casamento: continuidade radical.
Assim como se assemelham os projetos de Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman de despertar os potenciais críticos da história de Os Inconfidentes (1972) e do romance São Bernardo (1971) com a proteção da respeitabilidade inatacável dos clássicos e do drama de época, também encontramos intenções próximas nas leituras de derivação tropicalista dos filmes Toda nudez será castigada (1973) e A Rainha Diaba (1974).
Nos dois filmes, cujas narrativas não são exatamente determinadas temporalmente, Arnaldo Jabor e Antonio Carlos da Fontoura se apropriaram de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos – autores vinculados a ousadias no campo da moral e a pioneirismos na representação do popular – retrabalhando os textos através do exagero pop-tropicalista e da articulação entre o moderno e o arcaico, o realismo e a paródia. Toda nudez será castigada e A Rainha Diaba são espetacularmente coloridos, musicalmente ricos e extraordinariamente violentos. Dinamizando os códigos do filme de gênero, enquanto o primeiro equilibra a sátira com o melodrama, o segundo opta pelo estilo policial, mas ambos compõem tragédias farsescas onde a decadência inevitável dá o tom.
Toda nudez será castigada e A Rainha Diaba foram produzidos com a “qualidade técnica” da produtora de Roberto Farias, chegaram ao grande público e a bilheterias satisfatórias através da distribuidora Ipanema Filmes e agradaram à maioria dos críticos. Embora o cinema brasileiro jamais tenha morrido, os meios de comunicação adoram ressuscitá-lo: em meio às “apelações” e “hermetismos”, eram louvados filmes “bons” e “populares” como os de Jabor e Fontoura que, acompanhados de Vai trabalhar, vagabundo! (1973) ou O amuleto de Ogum (1974), mostravam que o cinema brasileiro podia prosseguir no “rumo certo”. Jabor seguiu esse caminho, mas como enfant terrible, não deixou de buscar a provocação. Conforme a lógica comercial do “não se mexe em time que está ganhando”, o cineasta e seus produtores voltaram a Nelson Rodrigues no filme seguinte, O casamento (1975), adaptação do romance escrito e censurado em 1966.
Mergulho mais radical no “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues, a nova adaptação de Jabor era acompanhada da exacerbação de inúmeros aspectos de seu filme anterior, como a teatralização da narrativa (que em O casamento se assume operística), a representação da decadência da moral burguesa (explicitada no mar de lama das imagens que abrem o filme) e o choque pela violência exposta graficamente.
A articulação de sentidos através da montagem – que em Toda nudez será castigada se dava sobretudo em momentos chaves (como na seqüência final), enquanto antes a câmera dinâmica de Eduardo Escorel era quem ditava o ritmo –, ganha força em O casamento, filme que articula diversos níveis narrativos ao longo das 24 horas entremeadas por flashbacks que antecedem a cerimônia do título. O fotógrafo e câmera Dib Lutfi, praticamente um steady cam humano, confere uma fluidez fantasmagórica às cenas emolduradas por Beethoven que parecem curiosamente atuais para um cinema supostamente pós-moderno, representativo de um planeta globalizado e desterritorializado.
É possível identificar em O casamento aquilo que Ismail Xavier chamou de “anatomia da decadência” no retrato do universo burguês, em que Glorinha (Adriana Prieto) representa o futuro e a continuidade (mas com ruptura) da família do Dr. Sabino (Paulo Porto) através de seu casamento, numa relação que não deixa de guardar semelhanças com o par Herculano e Serginho.
O filme começa com duas questões envolvendo seus personagens: Dr. Sabino é ou não um “homem de bem” (como lhe pediu seu pai no leito de morte); Glorinha, sua filha predileta, é ou não virgem. A constatação e a confissão são seguidas da lembrança de como as coisas se deram.
Em Toda nudez será castigada, Herculano tenta convencer Serginho do seu casamento para “limpar” a prostituta. O filho concorda apenas quando percebe ali a oportunidade de exprimir seu ressentimento, destruindo o que o pai tentava precariamente construir. Em O casamento, o pai igualmente deseja o matrimônio – dessa vez o da filha – como o “ideal” a ser alcançado. O casamento representa um sonho (ou um fantasma) simbolizado pelo vestido de noiva a flutuar etereamente na sala de casa. “O casamento é o mais importante”, afirma fervorosamente Sabino, mesmo que isso vá contra seus desejos mais íntimos: a paixão pela filha, que ele assume depois de superar todas as hesitações que acompanham seus receios e pudores, mas que a angelical Glorinha, misto de ingenuidade e cinismo, recusa com horror.
A cerimônia do título é o clímax do filme, o ponto máximo para o Dr. Sabino, quando ele faz o que é “certo” para um homem de bem, não o que ele “perversamente” deseja. Finalmente ele pode expiar suas culpas, “assumir sua lepra”, na contradição que o final reserva: é um homem de bem incriminado por assassinato; tem a consciência limpa assumindo a culpa justamente por aquilo que não fez; torna-se finalmente um homem livre quando algemado.
Há novamente um descompasso entre as duas gerações. Apesar das dúvidas, Glorinha finalmente aceita o que a família lhe reserva: o casamento com o noivo de quem não gosta, o vestido branco não sendo mais virgem. As novas gerações surpreendem as mais velhas não pelos caminhos que escolhem (a viagem de Serginho, o casamento de Glorinha, opções sempre desejadas pelos seus pais), mas pela desenvoltura com que o fazem. Assim como Serginho se vinga contra Herculano, Geni e toda a família sem olhar para trás (a não ser para humilhar com crueldade a madrasta e amante), Glorinha corre de Sabino na praia deixando-o gritar sozinho – mas corre para casa, para o casamento no dia seguinte.
A oposição de classe reaparece em O casamento, sobretudo através de Noêmia (Camila Amado), funcionária de Sabino, utilizada quando interessa e abandonada quando não é mais útil. Num quadro de total decadência e tragédia, assim como Geni, a secretária tem esperança, o que se revela, na ordem das coisas, uma completa ingenuidade. Como a prostituta, seu final é a morte.
O “povo” apontado por Carlinhos em seu turismo pelo subúrbio de ruínas e destroços não é poupado do retrato cruel. O destino dos três jovens da zona sul é o casarão do enfermeiro homossexual Zé Honório (André Valli). Limpo no passado, o lugar surge coberto de teias de aranhas, numa crítica feroz à “modernização conservadora” em que enceradeira, liquidificador e rádio se misturam a móveis, esculturas e tapeçarias cheirando a mofo.
O tom documental antes presente nas imagens do bordel de Toda nudez será castigada transforma-se em O casamento em imagens documentárias em preto e branco (mais verdadeiro que o colorido) no início e no final do filme. Amplia-se o teatro, mas reafirma-se o real como o palco onde o espetáculo se desenrola. No primeiro filme, Jabor abriu mão dos personagens do médico e do padre (enquanto os censores eliminaram o delegado), não restando nenhuma instância além dos locais onde se desenrolavam o drama principal. Na segunda investida do cineasta pelo universo de Nelson Rodrigues, o palco se abre para o mundo exterior, inclusive pelos repórteres e fotógrafos que acompanham o transe final e público de Sabino.
Se na passagem para os anos 1970 certa parcela do cinema brasileiro insistiu em painéis nacionais – como os malsucedidos comercialmente Pindorama ou Os herdeiros (1969) – enquanto havia simultaneamente o deslocamento na direção do “drama de família” – como os sucessos de bilheteria Copacabana me engana (1969) ou Matou a família e foi ao cinema (1969) –, Jabor busca em O casamento uma espécie de síntese. Colocando à vista o que Nelson Rodrigues só colocou no papel – em prosa, destinada à leitura privada, não em drama, destinado à exposição coletiva – o cineasta constrói um retrato caótico e trágico do país como uma ópera familiar.
O desejo pelo choque através da violência insuportável – característica de diversos filmes marginais e retrabalhada com moldura pop em A Rainha Diaba – está presente em O casamento, assim como também em alguns filmes policiais de Antônio Calmon, companheiro de Jabor da “terceira geração do Cinema Novo” que parece ter seguido um dos atalhos da trilha aberta pelo filme de Fontoura. [4]
Pela sensibilidade e perspicácia em reavaliar as novas configurações do Brasil e do mundo, parece ainda significativo que Arnaldo Jabor e Antônio Calmon tenham sido os cineastas oriundos do Cinema Novo que alcançaram maior expressão no cinema carioca dos anos 1980 – com a representação dos sonhos e desejos da juventude em um novo mundo em Eu sei que vou te amar (1984) e Menino do Rio (1982). Da mesma forma, foram aqueles que, de sua geração, conseguiram uma inserção mais significativa no universo televisivo, particularmente a Rede Globo, quando a crise do cinema brasileiro se acentuou.
Por fim, é importante ressaltar que a análise de O casamento foi prejudicada pela visão da cópia lançada em dvd remontada pelo cineasta – uma versão “suavizada”, em suas palavras. Embora trate-se de um direito inapelável do artista ter controle sobre sua obra, a praticamente total impossibilidade de acesso ao filme conforme foi concebido e lançado comercialmente em 1975 parece revelar um traço de prepotência no trato com o próprio passado, possivelmente característico de parte de uma geração que hoje dita os rumos do país.



Rafael de Luna Freire

Coordenador do Setor de Documentação da Cinemateca do MAM, doutorando do programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da UFF e organizador do Cineclube Tela Brasilis.



[1] Possuindo resquícios de moral no meio da sordidez e gotas de esperança em meio ao sofrimento, Geni se insere numa linhagem cujo marco é a Neusa Sueli de Navalha na carne – peça (1967) e filme (1970) – e que se fundiria com outro personagem trágico, o do travesti, na igualmente Geni de Ópera do malandro – peça (1980) e filme (1986). Num equilíbrio entre o realismo e a paródia, a prostituta de Toda nudez será castigada se encontra com a Isa (Odete Lara) de A Rainha Diaba (1974), mas já sinaliza intenções que desaguariam em Iracema: uma transa amazônica (1976).
[2] XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
[3] Ultrapassado pela revolução sexual e em sintonia com a dimensão paródica que permeia a moldura melodramática, a adaptação de Jabor confere à fuga de Serginho com o ladrão boliviano um caráter anedótico quase “pornochanchadesco”, próximo, por exemplo, à piada final do episódio de Braz Chediak em Os mansos (1973).
[4] Refiro-me à presença de personagens ambivalentes como a Leninha (Denise Dumont) de Terror e êxtase (1979), jovem burguesa que oscila entre seu mundo e a marginalidade, ou da exacerbação sedutora da violência em Eu matei Lúcio Flávio (1979), principalmente na cena do assalto à farmácia. Curiosamente, a aliança de Calmon com o astro e produtor Jece Valadão se encerrou após o fracasso de O torturador (1980), que parece ser talvez o Pindorama que o cineasta ainda não tivesse feito.