Por conta da minha pesquisa de mestrado, me interessei pelas relações entre teatro e cinema brasileiros, especialmente as adaptações cinematográficas de peças teatrais. Embora meu foco sempre tenha sido Plínio Marcos, também cheguei a escrever sobre as versões de textos de Nelson Rodrigues. Este artigo foi escrito para o catálogo da mostra "Arnaldo Jabor: 40 anos de opinião pública", dos amigos Eduardo Ades e Mariana Kaufman, no Centro Cultural Banco do Brasil em 2007. Gosto desse texto que nunca foi disponibilizado na internet.
Encontro marcado: Arnaldo Jabor e Nelson Rodrigues.
Ao longo de apenas quatro anos, entre 1962 e 1966, foram
lançados nos cinemas seis longas-metragens adaptados de quatro peças e de um
folhetim (transformado em romance) de Nelson Rodrigues, no que ficou conhecido
como o primeiro ciclo rodriguiano no cinema. Apesar da variedade de propostas,
todos esses filmes realizados por diferentes cineastas e produtores
compartilhavam a intenção de alcançar o grande público através da fama do
polêmico dramaturgo e da mistura de ousadia e sensacionalismo, adaptando sua obra
então recente e comercialmente bem sucedida produzida entre 1959 e 1962.
Depois dessa primeira fase, a ausência de Nelson Rodrigues
das telas coincidiu com reviravoltas na situação política do país: o acirramento dos conflitos após o golpe de
1964, a decretação do AI-5 e a fase de maior violência da repressão, quando o
dramaturgo chegou a ver seu filho, militante do MR-8, ser preso por agentes do
regime militar que ele apoiava explicitamente. Já estávamos nos anos 70: o
milagre econômico anestesiava grande parte da classe média e a juventude se via
às voltas com a revolução comportamental.
Nesse mesmo período, o cinema brasileiro não deixou de
passar por um momento de redefinições. O Cinema Novo, que ainda se debatia
entre a análise do golpe e seus encontros e desencontros com o público, seria
atropelado por uma nova geração capitaneada pelos jovens pais de um Cinema
Marginal. E ambos comeriam a poeira de Roberto Carlos em ritmo de aventura
(1968) e Os paqueras (1969), fenômenos de bilheteria do cinema jovem dos irmãos
Reginaldo e Roberto Farias. Em São Paulo surgia a Boca do Lixo enquanto no Rio
e em Brasília produtores e militares gestavam a Embrafilme.
Saltaram às telas bundas e peitos coloridos margeados por
lixo e vômitos em preto e branco. Para ambos as tesouras dos censores e a
escassez crescente das salas de cinema. Se os militares afirmavam defender o
Brasil da importação cultural imperialista e se apropriavam do projeto
“nacional-popular”, que rumos se apresentavam? O público (o povo convertido em
consumidor) se tornou o termômetro: ele quer se ver na tela; ele quer entender
os filmes; ele quer qualidade (mas se vai ver pornochanchada, ele é burro e não
conta).
Justamente neste delicado momento, o cineasta Arnaldo Jabor
retomou a trajetória de Nelson Rodrigues no cinema. Depois do completo fracasso
de seu Pindorama (1970) – produção da Vera Cruz e distribuição da Columbia
Pictures –, o cineasta adaptou a última peça então escrita por Nelson Rodrigues
e encenada no já longínquo ano de 1965. Quando Cleyde Yáconis, no papel de
Geni, dizia nos palcos “perto de você eu fico molhadinha”, a platéia do Teatro
Serrador ainda podia estremecer, mas milhões de espectadores de cinema já
tinham visto o desfile de seios patrocinado por Jece Valadão em Boca de Ouro
(1962) ou o Fregolente lascivo e de toalha em Bonitinha, mas ordinária (1963).
Em 1973, Jabor não economizou nos palavrões ou na nudez de Darlene Glória: isso
não era mais a novidade, embora ainda estremecesse os militares, que chegaram a
censurar até o ladrão boliviano! Era justamente essa contradição – da peça e do
Brasil – que interessava ao cineasta.
Toda nudez será castigada
O principal conflito da peça de Nelson Rodrigues é a
oposição entre dois pólos (vida e morte, dia e noite, comunhão e solidão), com
Geni (Darlene Glória) de um lado, e do
outro, Herculano (Paulo Porto) e sua “família só de tias”. O personagem de
Patrício (Paulo Cezar Pereio), cliente da primeira e irmão do segundo, é quem
faz a ligação entre esses dois universos, conduzindo a tragédia do primeiro ao
último ato.
No filme de Arnaldo Jabor, Patrício se despede cedo (embora
Pereio, de pijamas, cabelo desgrenhado e coçando o saco, roube as primeiras
cenas) e é o próprio filho de Herculano, Serginho (Paulo Sacks) – na peça
apenas marionete do tio rancoroso – quem assume a responsabilidade por seus
atos. Da descoberta no exame da cueca do pai que “seu desejo pinga”, passando
pelo pedido para que Geni se torne sua madrasta, até a revelação para a amante
de sua fuga com o ladrão boliviano, todos os atos passam a ser engendrados por
um Serginho responsável por suas ações.
Desse modo, na versão cinematográfica de Toda nudez será
castigada não só o drama de Geni assume o centro, como se articula mais
explicitamente um triângulo amoroso, cujos vértices são o pai, o filho e a
prostituta. Diferentemente da peça, o filme de Jabor articula abertamente
paralelismos entre o pai e o filho em que ambos tentam, cada um à sua maneira,
escapar da decadência irrefreável de valores caducos e normas sociais
ultrapassadas, vendo em Geni uma possível tábua de salvação.
Na primeira parte do filme, somos confrontados com um
Herculano dividido entre o luto pela viuvez recente e a arrebatadora paixão
pela prostituta. Embora claudicante, ele consegue se libertar da memória da
falecida esposa, mas não do peso da família, com figuras simbolizando o passado
e a tradição (as tias), a possibilidade de desvio (Patrício) e a continuidade
das normas (Serginho). Seu destino é continuar onde sempre esteve: viúvo no
início, novamente viúvo no final.
Desajeitadamente conciliatório, Herculano ainda tenta criar
um paraíso escondido numa mansão, onde como Adão e Eva, nus em meio ao jardim,
ele e Geni se amam num éden tropical. Mas se sexo é amor, como tentou
justificar para o filho no encontro no cemitério, ele não deixa de ser pecado.
É exatamente na visão do pai em pleno ato que o filho, puro como um anjo da
morte, cai definitivamente. Se Serginho era “impotente como um santo”, a perda
da castidade no estupro que se segue implica na capacidade de ereção. Suavizada
a analogia de Caim e Abel da peça original em favor de outro drama bíblico no
filme, é mordendo uma maçã e desperto pelo desejo, que Serginho manda Geni
tirar a roupa no quarto do hospital, tendo a idéia de sua vingança contra o
pai.
Esse aspecto ganha força no filme de Jabor ao mostrar o que
na peça de Nelson Rodrigues era elipse. A seqüência das núpcias de Herculano
com a noiva tornada virgem, num aposento decorado com lençóis e rosas brancas e
iluminado pelo sol, é contraposta à versão noturna da cena, em que a prostituta
experiente inicia sexualmente Serginho num quarto escuro e avermelhado como o
inferno.
Entre Deus e o Diabo, Geni apanha dos dois lados. Em
diferentes momentos, pai e filho esboçam o ato de esganar a prostituta, ao que
ela responde, em ambos os casos, com seu arrebatador e irresponsável desejo. A
prostituta é uma ingênua que aguarda seu príncipe encantado no quarto de bordel
onde o castelo só existe no pôster da parede. Sufocada pela culpa, ela não quer
um príncipe para buscá-la, mas para ser salvo por ela. Geni, coisificada por
profissão, quer ser sujeito da ação e não objeto, mas disso ela não passa,
retomando a figura vitimizada da prostituta trágica.
[1]
Como já apontou Ismail Xavier
[2],
Serginho é um personagem ambivalente, tanto agente da tradição (tendo Geni como
sua principal vítima), quanto também pólo de subversão da própria família
(atingindo seu pai). Entretanto, não se trata de uma vitória de Serginho sobre
a autoridade patriarcal, já desautorizada, e com a qual o espectador poderia se
identificar – ainda mais pela resignificação pela qual o homossexualismo passou
da época da peça para a do filme.
[3]
Trata-se sim da exploração do mais fraco (a prostituta) pelo mais forte (a
família) e de sua tentativa egoísta e inescrupulosa para escapar da decadência
do universo cujas entranhas Nelson Rodrigues inúmeras vezes revelou, e cujas
críticas foram reapropriadas por Arnaldo Jabor em um momento político do país
marcado pela hipocrisia moral que resguardava o projeto conservador em marcha.
Além do retrato
amargo da “Tradição” (decadente e anacrônica) e da “Família” (hipócrita e
repressora), a palavra que faltava para completar o trinômio surge na
exploração da prostituta, tornada “Propriedade”, mais um dos objetos guardados
na mansão a ser utilizado e descartado. Desse modo, através da crítica ao
universo do privado, das emoções íntimas, no filme Toda nudez será castigada se
articula a crítica social com o esboço da luta de classes, opondo as duas faces
de uma mesma moeda do explorador ao personagem explorado. E como afirma o dito
popular, a corda sempre arrebenta no lado mais fraco.
Não é coincidência que as principais imagens de tom
documental, mais “autênticas”, e logo, mais respeitosas – afora as tomadas
feitas nas ruas dentre os pedestres – são do universo diametralmente oposto ao
de Herculano (“o melhor partido do país”) e de seu herdeiro. São no bordel e na
cadeia – destacados pela adaptação de Jabor – que pai e filho encontram suas
“salvações”, a princípio indesejadas e traumáticas (no porre de um, na prisão
de outro), mas depois atraentes e irresistíveis. A prostituta apaixonada e o
ladrão boliviano representam o colorido que se opõe ao negro do luto.
No texto de Nelson Rodrigues, o estupro de Serginho não é
mostrado. Segundo o relato da tia, ele entrou num botequim, bebeu pela primeira
vez e se envolveu numa briga. Levado em cana pela polícia, foi estuprado pelo
único companheiro de cela, um ladrão boliviano. Jabor ilustra esse trecho em
duas cenas. Na primeira, tem-se um “pé sujo” onde dois homens bebem cerveja. No
discurso de um deles – pobre, negro, sujo e embriagado –, comentários sobre
futebol se misturam ao rancor antiburguês e moralista. Quando Serginho surge no
bar, antes mesmo de beber um copo de cerveja, ele é provocado pelo tal homem: “Olha
aí: bicha! Roupa grã-fina, roupinha nova, roupa de mulher”. O homem trata de se
diferenciar como trabalhador em relação àquele “estranho”: “Porque eu sou um
cara que trabalha há 20 na Leopoldina...”. Ambos começam a discutir e enquanto
Serginho grita se afastando histericamente (“tira a mão de mim!”), o outro diz,
trôpego: “O que falta em vocês é religião!”. Assim como Herculano tem nojo do
bordel de Geni, Serginho expressa o completo asco daquele lugar. Mas é para o
puteiro e para o boteco que ambos fogem nos momentos de crise.
Colocado na cadeia depois da discussão no bar, Serginho se
destaca dos demais presos numa situação que remonta imediatamente ao
momento-chave da peça Barrela. Entretanto, não se reproduz o tom ameaçador do
texto de Plínio Marcos, apesar do medo de Serginho. É isolado no canto
exatamente oposto da cela que outro personagem singular se levanta: o ladrão
boliviano. Mais forte e decidido do que os demais presos, ele avança na direção
do garoto. Trata-se do encontro entre dois estrangeiros em que o povo, passivo,
apenas acompanha sem participar: é um coro que promove um carnaval.
Membros de
uma família confinada a interiores, de casas fechadas com grades nas janelas,
Herculano e Serginho buscam em Geni, sempre voltada para a luz, a abertura para
o mundo. A prostituta é usada para iluminar a vida mofada, retirando os lençóis
por cima dos móveis da velha mansão como quem espanta fantasmas adormecidos.
Entretanto, é envolta por um desses mesmos lençóis brancos, transformando-se
ela própria numa assombração salpicada de sangue, que ela encontra a
morte. Irremediavelmente preso à
tradição, Herculano tentara incorporar precária e fingidamente a prostituta à
normalidade burguesa, mas não isso não era possível. Já Serginho – fruto de uma
nova geração menos hipócrita e mais cínica –, consegue se libertar do passado,
mas não encontra alternativa além da fuga. Sua abertura para o mundo está no
aeroporto.
O casamento: continuidade radical.
Assim como se assemelham os projetos de Joaquim Pedro de
Andrade e Leon Hirszman de despertar os potenciais críticos da história de Os
Inconfidentes (1972) e do romance São Bernardo (1971) com a proteção da
respeitabilidade inatacável dos clássicos e do drama de época, também
encontramos intenções próximas nas leituras de derivação tropicalista dos
filmes Toda nudez será castigada (1973) e A Rainha Diaba (1974).
Nos dois filmes, cujas narrativas não são exatamente
determinadas temporalmente, Arnaldo Jabor e Antonio Carlos da Fontoura se
apropriaram de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos – autores vinculados a ousadias
no campo da moral e a pioneirismos na representação do popular – retrabalhando
os textos através do exagero pop-tropicalista e da articulação entre o moderno
e o arcaico, o realismo e a paródia. Toda nudez será castigada e A Rainha Diaba
são espetacularmente coloridos, musicalmente ricos e extraordinariamente
violentos. Dinamizando os códigos do filme de gênero, enquanto o primeiro
equilibra a sátira com o melodrama, o segundo opta pelo estilo policial, mas
ambos compõem tragédias farsescas onde a decadência inevitável dá o tom.
Toda nudez
será castigada e A Rainha Diaba foram produzidos com a “qualidade técnica” da
produtora de Roberto Farias, chegaram ao grande público e a bilheterias
satisfatórias através da distribuidora Ipanema Filmes e agradaram à maioria dos
críticos. Embora o cinema brasileiro jamais tenha morrido, os meios de
comunicação adoram ressuscitá-lo: em meio às “apelações” e “hermetismos”, eram
louvados filmes “bons” e “populares” como os de Jabor e Fontoura que,
acompanhados de Vai trabalhar, vagabundo! (1973) ou O amuleto de Ogum (1974),
mostravam que o cinema brasileiro podia prosseguir no “rumo certo”. Jabor
seguiu esse caminho, mas como enfant terrible, não deixou de buscar a
provocação. Conforme a lógica comercial do “não se mexe em time que está
ganhando”, o cineasta e seus produtores voltaram a Nelson Rodrigues no filme
seguinte, O casamento (1975), adaptação do romance escrito e censurado em 1966.
Mergulho
mais radical no “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues, a nova adaptação de
Jabor era acompanhada da exacerbação de inúmeros aspectos de seu filme
anterior, como a teatralização da narrativa (que em O casamento se assume
operística), a representação da decadência da moral burguesa (explicitada no
mar de lama das imagens que abrem o filme) e o choque pela violência exposta
graficamente.
A
articulação de sentidos através da montagem – que em Toda nudez será castigada
se dava sobretudo em momentos chaves (como na seqüência final), enquanto antes
a câmera dinâmica de Eduardo Escorel era quem ditava o ritmo –, ganha força em O
casamento, filme que articula diversos níveis narrativos ao longo das 24 horas
entremeadas por flashbacks que antecedem a cerimônia do título. O fotógrafo e
câmera Dib Lutfi, praticamente um steady cam humano, confere uma fluidez
fantasmagórica às cenas emolduradas por Beethoven que parecem curiosamente
atuais para um cinema supostamente pós-moderno, representativo de um planeta
globalizado e desterritorializado.
É possível identificar em O casamento aquilo que Ismail
Xavier chamou de “anatomia da decadência” no retrato do universo burguês, em
que Glorinha (Adriana Prieto) representa o futuro e a continuidade (mas com
ruptura) da família do Dr. Sabino (Paulo Porto) através de seu casamento, numa
relação que não deixa de guardar semelhanças com o par Herculano e Serginho.
O filme começa com duas questões envolvendo seus
personagens: Dr. Sabino é ou não um “homem de bem” (como lhe pediu seu pai no
leito de morte); Glorinha, sua filha predileta, é ou não virgem. A constatação
e a confissão são seguidas da lembrança de como as coisas se deram.
Em Toda nudez será castigada, Herculano tenta convencer
Serginho do seu casamento para “limpar” a prostituta. O filho concorda apenas
quando percebe ali a oportunidade de exprimir seu ressentimento, destruindo o
que o pai tentava precariamente construir. Em O casamento, o pai igualmente
deseja o matrimônio – dessa vez o da filha – como o “ideal” a ser alcançado. O
casamento representa um sonho (ou um fantasma) simbolizado pelo vestido de
noiva a flutuar etereamente na sala de casa. “O casamento é o mais importante”,
afirma fervorosamente Sabino, mesmo que isso vá contra seus desejos mais
íntimos: a paixão pela filha, que ele assume depois de superar todas as
hesitações que acompanham seus receios e pudores, mas que a angelical Glorinha,
misto de ingenuidade e cinismo, recusa com horror.
A cerimônia do título é o clímax do filme, o ponto máximo
para o Dr. Sabino, quando ele faz o que é “certo” para um homem de bem, não o
que ele “perversamente” deseja. Finalmente ele pode expiar suas culpas,
“assumir sua lepra”, na contradição que o final reserva: é um homem de bem
incriminado por assassinato; tem a consciência limpa assumindo a culpa justamente
por aquilo que não fez; torna-se finalmente um homem livre quando algemado.
Há novamente um descompasso entre as duas gerações. Apesar
das dúvidas, Glorinha finalmente aceita o que a família lhe reserva: o
casamento com o noivo de quem não gosta, o vestido branco não sendo mais
virgem. As novas gerações surpreendem as mais velhas não pelos caminhos que
escolhem (a viagem de Serginho, o casamento de Glorinha, opções sempre
desejadas pelos seus pais), mas pela desenvoltura com que o fazem. Assim como
Serginho se vinga contra Herculano, Geni e toda a família sem olhar para trás
(a não ser para humilhar com crueldade a madrasta e amante), Glorinha corre de
Sabino na praia deixando-o gritar sozinho – mas corre para casa, para o
casamento no dia seguinte.
A oposição
de classe reaparece em O casamento, sobretudo através de Noêmia (Camila Amado),
funcionária de Sabino, utilizada quando interessa e abandonada quando não é
mais útil. Num quadro de total decadência e tragédia, assim como Geni, a
secretária tem esperança, o que se revela, na ordem das coisas, uma completa
ingenuidade. Como a prostituta, seu final é a morte.
O “povo”
apontado por Carlinhos em seu turismo pelo subúrbio de ruínas e destroços não é
poupado do retrato cruel. O destino dos três jovens da zona sul é o casarão do
enfermeiro homossexual Zé Honório (André Valli). Limpo no passado, o lugar
surge coberto de teias de aranhas, numa crítica feroz à “modernização
conservadora” em que enceradeira, liquidificador e rádio se misturam a móveis,
esculturas e tapeçarias cheirando a mofo.
O tom documental antes presente nas imagens do bordel de Toda
nudez será castigada transforma-se em O casamento em imagens documentárias em
preto e branco (mais verdadeiro que o colorido) no início e no final do filme.
Amplia-se o teatro, mas reafirma-se o real como o palco onde o espetáculo se
desenrola. No primeiro filme, Jabor abriu mão dos personagens do médico e do
padre (enquanto os censores eliminaram o delegado), não restando nenhuma
instância além dos locais onde se desenrolavam o drama principal. Na segunda
investida do cineasta pelo universo de Nelson Rodrigues, o palco se abre para o
mundo exterior, inclusive pelos repórteres e fotógrafos que acompanham o transe
final e público de Sabino.
Se na passagem para os anos 1970 certa parcela do cinema
brasileiro insistiu em painéis nacionais – como os malsucedidos comercialmente Pindorama
ou Os herdeiros (1969) – enquanto havia simultaneamente o deslocamento na
direção do “drama de família” – como os sucessos de bilheteria Copacabana me
engana (1969) ou Matou a família e foi ao cinema (1969) –, Jabor busca em O
casamento uma espécie de síntese. Colocando à vista o que Nelson Rodrigues só
colocou no papel – em prosa, destinada à leitura privada, não em drama,
destinado à exposição coletiva – o cineasta constrói um retrato caótico e
trágico do país como uma ópera familiar.
O desejo pelo choque através da violência insuportável –
característica de diversos filmes marginais e retrabalhada com moldura pop em A
Rainha Diaba – está presente em O casamento, assim como também em alguns filmes
policiais de Antônio Calmon, companheiro de Jabor da “terceira geração do
Cinema Novo” que parece ter seguido um dos atalhos da trilha aberta pelo filme
de Fontoura.
[4]
Pela sensibilidade e perspicácia em reavaliar as novas
configurações do Brasil e do mundo, parece ainda significativo que Arnaldo
Jabor e Antônio Calmon tenham sido os cineastas oriundos do Cinema Novo que
alcançaram maior expressão no cinema carioca dos anos 1980 – com a representação
dos sonhos e desejos da juventude em um novo mundo em Eu sei que vou te amar
(1984) e Menino do Rio (1982). Da mesma forma, foram aqueles que, de sua
geração, conseguiram uma inserção mais significativa no universo televisivo,
particularmente a Rede Globo, quando a crise do cinema brasileiro se acentuou.
Por fim, é importante ressaltar que a análise de O casamento
foi prejudicada pela visão da cópia lançada em dvd remontada pelo cineasta –
uma versão “suavizada”, em suas palavras. Embora trate-se de um direito
inapelável do artista ter controle sobre sua obra, a praticamente total
impossibilidade de acesso ao filme conforme foi concebido e lançado
comercialmente em 1975 parece revelar um traço de prepotência no trato com o
próprio passado, possivelmente característico de parte de uma geração que hoje
dita os rumos do país.
Rafael de Luna Freire
Coordenador do Setor de Documentação da Cinemateca do MAM,
doutorando do programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da
UFF e organizador do Cineclube Tela Brasilis.