quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Textos sobre preservação audiovisual


Meu envolvimento com a preservação audiovisual sempre foi mais profissional do que acadêmico, e minha atuação no campo mais política (em fóruns e entidades de classe) do que intelectual (em sua manifestação escrita). Assim, escrevi poucos textos sobre preservação, apesar de ter feito muitas palestras e conferências e dado vários cursos e oficinas ao longo dos últimos anos. Um texto que propunha uma reflexão sobre o tema foi "A origem dos filmes: introdução sobre os conceitos de obra, material e cópia no universo das imagens em movimento". Mas a maioria do que escrevi aliava a preservação à história do cinema brasileiro, como “Algumas considerações sobre o cinema brasileiro da década de 1930” (catálogo da 5.CineOP, 2010) e “A preservação do cinema brasileiro da década de 60: ações e lacunas” (catálogo da 7.CineOP, 2012). Já o texto “Cinematecas e Universidades” foi produzido a partir da participação em um evento acadêmico na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, em 2010.

O único artigo verdadeiramente acadêmico que escrevi foi “Acervos documentais de arquivos audiovisuais” (publicado em HAMBURGUER, Esther; SOUZA, Gustavo; MENDONÇA, Leandro; AMÂNICO, Tunico (orgs). Estudos de Cinema SOCINE. São Paulo: Annablume: Fapesp: Socine, 2008).
Todos esses textos estão no meu blog preservação audiovisual - incluindo outros escritos especialmente para o blog, como "Subsídios para uma história recente da Cinemateca do MAM" - mas havia um pequeno artigo que permanecia inédito na internet, tendo sido publicado originalmente no livro organizado por Adriana Fresquet e Márcia Xavier "Novas imagens do desaprender" (Rio de Janeiro: Booklink: CINEAD-LISE-FE: UFRJ, 2008).
Tanto o artigo "Acervos documentais de arquivos audiovisuais" quanto "A documentação diversa em arquivos de filmes: uma rotina movida a paixão" tratam do tema da documentação correlata e estavam diretamente ligados ao meu trabalho enquanto Coordenador de Documentação na Cinemateca do MAM-RJ.


A documentação diversa em Arquivos de filmes: uma rotina movida a paixão


A paixão pelo cinema frequentemente não se esgota no tempo de duração da projeção de um filme, mas prossegue enquanto seus sons e as imagens, assim como seus sentidos e os sentimentos permanecem em nossas lembranças. Da mesma forma, o desejo de compreensão e conhecimento a respeito de uma obra audiovisual não se restringe somente à visão daquela própria obra. Há todo um universo que circunda não somente os filmes, mas o cinema como um todo, e que somente pode ser descoberto através de outros materiais além do rolo de película, da fita de vídeo, do DVD ou do arquivo digital.
O papel do que podemos chamar justamente de “documentação diversa” dentro de um arquivo de filmes, ou seja, todo tipo de documentação relativa à atividade audiovisual que não as próprias obras audiovisuais, não se resume a uma função meramente acessória. Apesar dos arquivos de filmes e das cinematecas se distinguirem das demais instituições de guarda como as bibliotecas, museus e arquivos principalmente pela natureza específica dos materiais aos quais dedicam seu trabalho – obras audiovisuais registradas em películas cinematográficas, fitas magnéticas, discos óticos ou em qualquer outro suporte existente ou que venha a ser inventado –, a documentação “não-fílmica” também é parte essencial de sua atividade.
Esse aspecto já podia ser observado no histórico documento redigido pela UNESCO em 27 de outubro de 1980 – A recomendação pela salvaguarda e conservação das imagens em movimento –, em que uma das medidas técnicas recomendadas era “coletar, conservar e tornar disponíveis, com fins de pesquisa e investigação, registros institucionais, documentos pessoais e outros materiais que documentem a origem, a produção, a distribuição e a projeção de imagens em movimento”.
Como parte fundamental do trabalho de arquivística audiovisual, o esforço dedicada a “outros materiais” também foi ressaltado na ata de fundação da ABPA – Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, primeira entidade representativa do setor criada recentemente em Ouro Preto, em 16 de junho de 2008, que ressalta como uma das funções e deveres de seus associados a preservação de “todo o conjunto de documentos, conceitos, técnicas e tecnologias” associados aos documentos audiovisuais.
A importância dessa documentação está ligada, por exemplo, ao fato de que muitas informações essenciais sobre uma obra audiovisual não podem ser resgatadas através da análise da obra em si, mas somente através de outros documentos, como por exemplo, datas de produção e lançamento. Roteiros, planilhas de produção, folhas de continuidade e diários de filmagem, por exemplo, trazem informações essenciais sobre a concepção de obras, como também sobre obras que nunca se concretizaram como o realizador as concebia. No Setor de Documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro temos inúmeros exemplos de documentos que elucidam o processo de criação de determinados filmes, como o roteiro datilografado, mas cheio de anotações manuscritas de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), os cuidadosos estudos de cenário e figurino de época de A ópera do malandro (Ruy Guerra, 1985), ou os fartos materiais de pesquisa para o filme Lamarca (Sérgio Rezende, 1994). Outros documentos trazem informações sobre filmes que se transformaram ao longo do processo de produção (como resultado, por exemplo, dos diversos cortes assinalados em alguns certificados de censura) ou que nunca chegaram a ser realizados (por exemplo, o roteiro inédito de Estouro na praça, de Alex Viany e Alinor Azevedo, que teria sido o melhor filme do realismo carioca dos anos 1950, segundo previsão glauberiana em Revisão crítica do cinema brasileiro).
Essa documentação é responsável também por retornar as obras ao contexto em que foram realizadas, fornecendo dados sobre sua recepção em diversos momentos de sua trajetória, de seu lançamento a exibições posteriores, sendo essenciais para uma história sócio-cultural do cinema. Críticas publicadas em jornais ou revistas especializadas nos revelam como muitos filmes hoje considerados clássicos foram duramente recebidos por jornalistas especializados em suas estréias, assim como obras aclamadas em suas épocas são frequentemente relegadas ao esquecimento pela ação do tempo.
Se a película cinematográfica com a qual o cinema escreveu grande parte de sua história inicial revelou-se de vida efêmera, sobretudo em países com clima tropical e costumeiro descaso com sua memória como o Brasil, frequentemente encontramos informações únicas sobre filmes já desaparecidos em fontes alternativas. Se absolutamente nenhum fragmento de toda a produção cinematográfica brasileira realizada entre 1898 e 1909 sobreviveu até os dias de hoje, as informações que temos sobre esse período fundamental da história do nosso cinema foram conseguidas em jornais, revistas, livros e depoimentos. O acaso muitas vezes ajuda, como na descoberta de um ingresso para o famoso Salão de Novidades Paris no Rio, um dos primeiros locais dedicados à exibição regular do cinematógrapho no Rio de Janeiro, esquecido dentro de um livro pertencente à biblioteca de Ruy Barbosa e provavelmente deixado lá pelo próprio. 
Essas felizes surpresas ocorrem de tempos em tempos na rotina de alguém que trabalha no setor de documentação de uma cinemateca, e eu mesmo posso descrever experiências pessoais da descoberta fortuita de um cartaz raro guardado dobrado dentro de um livro ou de uma carta manuscrita de um reconhecido cineasta esquecido junto com materiais de divulgação que iriam para o lixo.
Entretanto, o dia a dia em um arquivo é feito menos de acontecimentos extraordinários, e mais de um de trabalho repetitivo e cansativo de acondicionamento, classificação e guarda dos mais variados tipos de documentos. A grande parte do tempo não é dedicada a materiais raros, antigos ou de filmes e personalidades prestigiados, mas sim ao tratamento do que é produzido correntemente na atualidade, visto geralmente como coisas banais e descartáveis. Dividindo-se entre o passado que ainda não foi preservado (o drama das caixas e caixas fechadas aguardando tempo e disponibilidade dos funcionários), e o presente que deve ser capturado antes que desapareça (a tragédia das pilhas que crescem e se acumulam em nossas mesas), a sensação de angústia é inevitável frente a um trabalho cujo ideal é utópico e cuja realidade é sempre penosa. A falta de equipe treinada e em número suficiente, de equipamento adequado, de infra-estrutura apropriada e de insumos em quantidade necessária são problemas recorrentes e quase crônicos. Num trabalho que historicamente foi feito menos por especialistas na função (arquivistas), e mais por amantes do objeto de trabalho (o cinema), sem que isso tenha implicado menor rigor ou competência, a paixão é a principal força que move aqueles que passam seu tempo soterrado por impressos, fotos, cartazes, releases, jornais e revistas, num esforço de preservar justamente “aquilo com o qual os sonhos são feitos”, como uma vez disseram Humphrey Bogart e Shakespeare.

Rafael de Luna Freire
Coordenador de Documentação da Cinemateca do MAM-RJ e Professor de Preservação, Memória e Políticas Audiovisuais do Curso de Cinema e Audiovisual da UFF.




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