Meu envolvimento com a preservação audiovisual sempre foi mais profissional do que acadêmico, e minha atuação no campo mais política (em fóruns e entidades de classe) do que intelectual (em sua manifestação escrita). Assim, escrevi poucos textos sobre preservação, apesar de ter feito muitas palestras e conferências e dado vários cursos e oficinas ao longo dos últimos anos. Um texto que propunha uma reflexão sobre o tema foi "A origem dos filmes: introdução sobre os conceitos de obra, material e cópia no universo das imagens em movimento". Mas a maioria do que escrevi aliava a preservação à história do cinema brasileiro, como “Algumas considerações sobre o cinema brasileiro da década de 1930” (catálogo da 5.CineOP, 2010) e “A preservação do cinema brasileiro da década de 60: ações e lacunas” (catálogo da 7.CineOP, 2012). Já o texto “Cinematecas e Universidades” foi produzido a partir da participação em um evento acadêmico na Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, em 2010.
O único artigo verdadeiramente acadêmico que escrevi foi “Acervos documentais de arquivos audiovisuais” (publicado em HAMBURGUER, Esther; SOUZA, Gustavo;
MENDONÇA, Leandro; AMÂNICO, Tunico (orgs). Estudos de Cinema SOCINE. São Paulo:
Annablume: Fapesp: Socine, 2008).
Todos esses textos estão no meu blog preservação audiovisual - incluindo outros escritos especialmente para o blog, como "Subsídios para uma história recente da Cinemateca do MAM" - mas havia um pequeno artigo que permanecia inédito na internet, tendo sido publicado originalmente no livro organizado por Adriana Fresquet e Márcia Xavier "Novas imagens do desaprender" (Rio de Janeiro: Booklink: CINEAD-LISE-FE: UFRJ, 2008).
Tanto o artigo "Acervos documentais de arquivos audiovisuais" quanto "A documentação diversa em arquivos de filmes: uma rotina movida a paixão" tratam do tema da documentação correlata e estavam diretamente ligados ao meu trabalho enquanto Coordenador de Documentação na Cinemateca do MAM-RJ.
A documentação diversa em Arquivos de filmes: uma rotina movida a paixão
A paixão pelo cinema frequentemente não se esgota no tempo de duração da
projeção de um filme, mas prossegue enquanto seus sons e as imagens, assim como
seus sentidos e os sentimentos permanecem em nossas lembranças. Da mesma forma,
o desejo de compreensão e conhecimento a respeito de uma obra audiovisual não
se restringe somente à visão daquela própria obra. Há todo um universo que
circunda não somente os filmes, mas o cinema como um todo, e que somente pode
ser descoberto através de outros materiais além do rolo de película, da fita de
vídeo, do DVD ou do arquivo digital.
O papel do que podemos chamar
justamente de “documentação diversa” dentro de um arquivo de filmes, ou seja,
todo tipo de documentação relativa à atividade audiovisual que não as próprias
obras audiovisuais, não se resume a uma função meramente acessória. Apesar dos
arquivos de filmes e das cinematecas se distinguirem das demais instituições de
guarda como as bibliotecas, museus e arquivos principalmente pela natureza
específica dos materiais aos quais dedicam seu trabalho – obras audiovisuais
registradas em películas cinematográficas, fitas magnéticas, discos óticos ou
em qualquer outro suporte existente ou que venha a ser inventado –, a
documentação “não-fílmica” também é parte essencial de sua atividade.
Esse aspecto já podia ser observado
no histórico documento redigido pela UNESCO em 27 de outubro de 1980 – A recomendação pela salvaguarda e
conservação das imagens em movimento –, em que uma das medidas técnicas
recomendadas era “coletar, conservar e tornar disponíveis, com fins de pesquisa
e investigação, registros institucionais, documentos pessoais e outros
materiais que documentem a origem, a produção, a distribuição e a projeção de
imagens em movimento”.
Como parte fundamental do trabalho
de arquivística audiovisual, o esforço dedicada a “outros materiais” também foi
ressaltado na ata de fundação da ABPA – Associação Brasileira de Preservação
Audiovisual, primeira entidade representativa do setor criada recentemente em Ouro Preto, em 16 de
junho de 2008, que ressalta como uma das funções e deveres de seus associados a
preservação de “todo o conjunto de documentos, conceitos, técnicas e
tecnologias” associados aos documentos audiovisuais.
A importância dessa documentação está ligada, por exemplo, ao fato de que
muitas informações essenciais sobre uma obra audiovisual não podem ser
resgatadas através da análise da obra em si, mas somente através de outros
documentos, como por exemplo, datas de produção e lançamento. Roteiros,
planilhas de produção, folhas de continuidade e diários de filmagem, por
exemplo, trazem informações essenciais sobre a concepção de obras, como também
sobre obras que nunca se concretizaram como o realizador as concebia. No Setor
de Documentação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro temos
inúmeros exemplos de documentos que elucidam o processo de criação de
determinados filmes, como o roteiro datilografado, mas cheio de anotações
manuscritas de Terra em Transe
(Glauber Rocha, 1967), os cuidadosos estudos de cenário e figurino de época de A ópera do malandro (Ruy Guerra, 1985),
ou os fartos materiais de pesquisa para o filme Lamarca (Sérgio Rezende, 1994). Outros documentos trazem
informações sobre filmes que se transformaram ao longo do processo de produção
(como resultado, por exemplo, dos diversos cortes assinalados em alguns certificados
de censura) ou que nunca chegaram a ser realizados (por exemplo, o roteiro
inédito de Estouro na praça, de Alex
Viany e Alinor Azevedo, que teria sido o melhor filme do realismo carioca dos
anos 1950, segundo previsão glauberiana em Revisão
crítica do cinema brasileiro).
Essa documentação é responsável
também por retornar as obras ao contexto em que foram realizadas, fornecendo
dados sobre sua recepção em diversos momentos de sua trajetória, de seu
lançamento a exibições posteriores, sendo essenciais para uma história
sócio-cultural do cinema. Críticas publicadas em jornais ou revistas especializadas
nos revelam como muitos filmes hoje considerados clássicos foram duramente
recebidos por jornalistas especializados em suas estréias, assim como obras
aclamadas em suas épocas são frequentemente relegadas ao esquecimento pela ação
do tempo.
Se a película cinematográfica com a
qual o cinema escreveu grande parte de sua história inicial revelou-se de vida
efêmera, sobretudo em países com clima tropical e costumeiro descaso com sua
memória como o Brasil, frequentemente encontramos informações únicas sobre
filmes já desaparecidos em fontes alternativas. Se absolutamente nenhum
fragmento de toda a produção cinematográfica brasileira realizada entre 1898 e
1909 sobreviveu até os dias de hoje, as informações que temos sobre esse
período fundamental da história do nosso cinema foram conseguidas em jornais,
revistas, livros e depoimentos. O acaso muitas vezes ajuda, como na descoberta
de um ingresso para o famoso Salão de Novidades Paris no Rio, um dos primeiros
locais dedicados à exibição regular do cinematógrapho
no Rio de Janeiro, esquecido dentro de um livro pertencente à biblioteca de Ruy
Barbosa e provavelmente deixado lá pelo próprio.
Essas felizes surpresas ocorrem de
tempos em tempos na rotina de alguém que trabalha no setor de documentação de uma
cinemateca, e eu mesmo posso descrever experiências pessoais da descoberta fortuita
de um cartaz raro guardado dobrado dentro de um livro ou de uma carta
manuscrita de um reconhecido cineasta esquecido junto com materiais de
divulgação que iriam para o lixo.
Entretanto, o dia a dia em um
arquivo é feito menos de acontecimentos extraordinários, e mais de um de
trabalho repetitivo e cansativo de acondicionamento, classificação e guarda dos
mais variados tipos de documentos. A grande parte do tempo não é dedicada a materiais
raros, antigos ou de filmes e personalidades prestigiados, mas sim ao
tratamento do que é produzido correntemente na atualidade, visto geralmente
como coisas banais e descartáveis. Dividindo-se entre o passado que ainda não
foi preservado (o drama das caixas e caixas fechadas aguardando tempo e
disponibilidade dos funcionários), e o presente que deve ser capturado antes
que desapareça (a tragédia das pilhas que crescem e se acumulam em nossas
mesas), a sensação de angústia é inevitável frente a um trabalho cujo ideal é
utópico e cuja realidade é sempre penosa. A falta de equipe treinada e em
número suficiente, de equipamento adequado, de infra-estrutura apropriada e de insumos
em quantidade necessária são problemas recorrentes e quase crônicos. Num
trabalho que historicamente foi feito menos por especialistas na função
(arquivistas), e mais por amantes do objeto de trabalho (o cinema), sem que
isso tenha implicado menor rigor ou competência, a paixão é a principal força
que move aqueles que passam seu tempo soterrado por impressos, fotos, cartazes,
releases, jornais e revistas, num esforço de preservar justamente “aquilo com o
qual os sonhos são feitos”, como uma vez disseram Humphrey Bogart e Shakespeare.
Rafael de Luna
Freire
Coordenador de
Documentação da Cinemateca do MAM-RJ e Professor de Preservação, Memória e
Políticas Audiovisuais do Curso de Cinema e Audiovisual da UFF.
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