sábado, 5 de outubro de 2013

Encontro marcado: Arnaldo Jabor e Nelson Rodrigues, texto de 2007

Por conta da minha pesquisa de mestrado, me interessei pelas relações entre teatro e cinema brasileiros, especialmente as adaptações cinematográficas de peças teatrais. Embora meu foco sempre tenha sido Plínio Marcos, também cheguei a escrever sobre as versões de textos de Nelson Rodrigues. Este artigo foi escrito para o catálogo da mostra "Arnaldo Jabor: 40 anos de opinião pública", dos amigos Eduardo Ades e Mariana Kaufman, no Centro Cultural Banco do Brasil em 2007. Gosto desse texto que nunca foi disponibilizado na internet.



Encontro marcado: Arnaldo Jabor e Nelson Rodrigues.

Ao longo de apenas quatro anos, entre 1962 e 1966, foram lançados nos cinemas seis longas-metragens adaptados de quatro peças e de um folhetim (transformado em romance) de Nelson Rodrigues, no que ficou conhecido como o primeiro ciclo rodriguiano no cinema. Apesar da variedade de propostas, todos esses filmes realizados por diferentes cineastas e produtores compartilhavam a intenção de alcançar o grande público através da fama do polêmico dramaturgo e da mistura de ousadia e sensacionalismo, adaptando sua obra então recente e comercialmente bem sucedida produzida entre 1959 e 1962.
Depois dessa primeira fase, a ausência de Nelson Rodrigues das telas coincidiu com reviravoltas na situação política do país:  o acirramento dos conflitos após o golpe de 1964, a decretação do AI-5 e a fase de maior violência da repressão, quando o dramaturgo chegou a ver seu filho, militante do MR-8, ser preso por agentes do regime militar que ele apoiava explicitamente. Já estávamos nos anos 70: o milagre econômico anestesiava grande parte da classe média e a juventude se via às voltas com a revolução comportamental.
Nesse mesmo período, o cinema brasileiro não deixou de passar por um momento de redefinições. O Cinema Novo, que ainda se debatia entre a análise do golpe e seus encontros e desencontros com o público, seria atropelado por uma nova geração capitaneada pelos jovens pais de um Cinema Marginal. E ambos comeriam a poeira de Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968) e Os paqueras (1969), fenômenos de bilheteria do cinema jovem dos irmãos Reginaldo e Roberto Farias. Em São Paulo surgia a Boca do Lixo enquanto no Rio e em Brasília produtores e militares gestavam a Embrafilme.
Saltaram às telas bundas e peitos coloridos margeados por lixo e vômitos em preto e branco. Para ambos as tesouras dos censores e a escassez crescente das salas de cinema. Se os militares afirmavam defender o Brasil da importação cultural imperialista e se apropriavam do projeto “nacional-popular”, que rumos se apresentavam? O público (o povo convertido em consumidor) se tornou o termômetro: ele quer se ver na tela; ele quer entender os filmes; ele quer qualidade (mas se vai ver pornochanchada, ele é burro e não conta).
Justamente neste delicado momento, o cineasta Arnaldo Jabor retomou a trajetória de Nelson Rodrigues no cinema. Depois do completo fracasso de seu Pindorama (1970) – produção da Vera Cruz e distribuição da Columbia Pictures –, o cineasta adaptou a última peça então escrita por Nelson Rodrigues e encenada no já longínquo ano de 1965. Quando Cleyde Yáconis, no papel de Geni, dizia nos palcos “perto de você eu fico molhadinha”, a platéia do Teatro Serrador ainda podia estremecer, mas milhões de espectadores de cinema já tinham visto o desfile de seios patrocinado por Jece Valadão em Boca de Ouro (1962) ou o Fregolente lascivo e de toalha em Bonitinha, mas ordinária (1963). Em 1973, Jabor não economizou nos palavrões ou na nudez de Darlene Glória: isso não era mais a novidade, embora ainda estremecesse os militares, que chegaram a censurar até o ladrão boliviano! Era justamente essa contradição – da peça e do Brasil – que interessava ao cineasta.

Toda nudez será castigada
O principal conflito da peça de Nelson Rodrigues é a oposição entre dois pólos (vida e morte, dia e noite, comunhão e solidão), com Geni (Darlene Glória) de um lado,  e do outro, Herculano (Paulo Porto) e sua “família só de tias”. O personagem de Patrício (Paulo Cezar Pereio), cliente da primeira e irmão do segundo, é quem faz a ligação entre esses dois universos, conduzindo a tragédia do primeiro ao último ato.
No filme de Arnaldo Jabor, Patrício se despede cedo (embora Pereio, de pijamas, cabelo desgrenhado e coçando o saco, roube as primeiras cenas) e é o próprio filho de Herculano, Serginho (Paulo Sacks) – na peça apenas marionete do tio rancoroso – quem assume a responsabilidade por seus atos. Da descoberta no exame da cueca do pai que “seu desejo pinga”, passando pelo pedido para que Geni se torne sua madrasta, até a revelação para a amante de sua fuga com o ladrão boliviano, todos os atos passam a ser engendrados por um Serginho responsável por suas ações.
Desse modo, na versão cinematográfica de Toda nudez será castigada não só o drama de Geni assume o centro, como se articula mais explicitamente um triângulo amoroso, cujos vértices são o pai, o filho e a prostituta. Diferentemente da peça, o filme de Jabor articula abertamente paralelismos entre o pai e o filho em que ambos tentam, cada um à sua maneira, escapar da decadência irrefreável de valores caducos e normas sociais ultrapassadas, vendo em Geni uma possível tábua de salvação.
Na primeira parte do filme, somos confrontados com um Herculano dividido entre o luto pela viuvez recente e a arrebatadora paixão pela prostituta. Embora claudicante, ele consegue se libertar da memória da falecida esposa, mas não do peso da família, com figuras simbolizando o passado e a tradição (as tias), a possibilidade de desvio (Patrício) e a continuidade das normas (Serginho). Seu destino é continuar onde sempre esteve: viúvo no início, novamente viúvo no final. 
Desajeitadamente conciliatório, Herculano ainda tenta criar um paraíso escondido numa mansão, onde como Adão e Eva, nus em meio ao jardim, ele e Geni se amam num éden tropical. Mas se sexo é amor, como tentou justificar para o filho no encontro no cemitério, ele não deixa de ser pecado. É exatamente na visão do pai em pleno ato que o filho, puro como um anjo da morte, cai definitivamente. Se Serginho era “impotente como um santo”, a perda da castidade no estupro que se segue implica na capacidade de ereção. Suavizada a analogia de Caim e Abel da peça original em favor de outro drama bíblico no filme, é mordendo uma maçã e desperto pelo desejo, que Serginho manda Geni tirar a roupa no quarto do hospital, tendo a idéia de sua vingança contra o pai.
Esse aspecto ganha força no filme de Jabor ao mostrar o que na peça de Nelson Rodrigues era elipse. A seqüência das núpcias de Herculano com a noiva tornada virgem, num aposento decorado com lençóis e rosas brancas e iluminado pelo sol, é contraposta à versão noturna da cena, em que a prostituta experiente inicia sexualmente Serginho num quarto escuro e avermelhado como o inferno.
Entre Deus e o Diabo, Geni apanha dos dois lados. Em diferentes momentos, pai e filho esboçam o ato de esganar a prostituta, ao que ela responde, em ambos os casos, com seu arrebatador e irresponsável desejo. A prostituta é uma ingênua que aguarda seu príncipe encantado no quarto de bordel onde o castelo só existe no pôster da parede. Sufocada pela culpa, ela não quer um príncipe para buscá-la, mas para ser salvo por ela. Geni, coisificada por profissão, quer ser sujeito da ação e não objeto, mas disso ela não passa, retomando a figura vitimizada da prostituta trágica. [1]
Como já apontou Ismail Xavier[2], Serginho é um personagem ambivalente, tanto agente da tradição (tendo Geni como sua principal vítima), quanto também pólo de subversão da própria família (atingindo seu pai). Entretanto, não se trata de uma vitória de Serginho sobre a autoridade patriarcal, já desautorizada, e com a qual o espectador poderia se identificar – ainda mais pela resignificação pela qual o homossexualismo passou da época da peça para a do filme. [3] Trata-se sim da exploração do mais fraco (a prostituta) pelo mais forte (a família) e de sua tentativa egoísta e inescrupulosa para escapar da decadência do universo cujas entranhas Nelson Rodrigues inúmeras vezes revelou, e cujas críticas foram reapropriadas por Arnaldo Jabor em um momento político do país marcado pela hipocrisia moral que resguardava o projeto conservador em marcha.
 Além do retrato amargo da “Tradição” (decadente e anacrônica) e da “Família” (hipócrita e repressora), a palavra que faltava para completar o trinômio surge na exploração da prostituta, tornada “Propriedade”, mais um dos objetos guardados na mansão a ser utilizado e descartado. Desse modo, através da crítica ao universo do privado, das emoções íntimas, no filme Toda nudez será castigada se articula a crítica social com o esboço da luta de classes, opondo as duas faces de uma mesma moeda do explorador ao personagem explorado. E como afirma o dito popular, a corda sempre arrebenta no lado mais fraco.
Não é coincidência que as principais imagens de tom documental, mais “autênticas”, e logo, mais respeitosas – afora as tomadas feitas nas ruas dentre os pedestres – são do universo diametralmente oposto ao de Herculano (“o melhor partido do país”) e de seu herdeiro. São no bordel e na cadeia – destacados pela adaptação de Jabor – que pai e filho encontram suas “salvações”, a princípio indesejadas e traumáticas (no porre de um, na prisão de outro), mas depois atraentes e irresistíveis. A prostituta apaixonada e o ladrão boliviano representam o colorido que se opõe ao negro do luto.
No texto de Nelson Rodrigues, o estupro de Serginho não é mostrado. Segundo o relato da tia, ele entrou num botequim, bebeu pela primeira vez e se envolveu numa briga. Levado em cana pela polícia, foi estuprado pelo único companheiro de cela, um ladrão boliviano. Jabor ilustra esse trecho em duas cenas. Na primeira, tem-se um “pé sujo” onde dois homens bebem cerveja. No discurso de um deles – pobre, negro, sujo e embriagado –, comentários sobre futebol se misturam ao rancor antiburguês e moralista. Quando Serginho surge no bar, antes mesmo de beber um copo de cerveja, ele é provocado pelo tal homem: “Olha aí: bicha! Roupa grã-fina, roupinha nova, roupa de mulher”. O homem trata de se diferenciar como trabalhador em relação àquele “estranho”: “Porque eu sou um cara que trabalha há 20 na Leopoldina...”. Ambos começam a discutir e enquanto Serginho grita se afastando histericamente (“tira a mão de mim!”), o outro diz, trôpego: “O que falta em vocês é religião!”. Assim como Herculano tem nojo do bordel de Geni, Serginho expressa o completo asco daquele lugar. Mas é para o puteiro e para o boteco que ambos fogem nos momentos de crise.
Colocado na cadeia depois da discussão no bar, Serginho se destaca dos demais presos numa situação que remonta imediatamente ao momento-chave da peça Barrela. Entretanto, não se reproduz o tom ameaçador do texto de Plínio Marcos, apesar do medo de Serginho. É isolado no canto exatamente oposto da cela que outro personagem singular se levanta: o ladrão boliviano. Mais forte e decidido do que os demais presos, ele avança na direção do garoto. Trata-se do encontro entre dois estrangeiros em que o povo, passivo, apenas acompanha sem participar: é um coro que promove um carnaval.
            Membros de uma família confinada a interiores, de casas fechadas com grades nas janelas, Herculano e Serginho buscam em Geni, sempre voltada para a luz, a abertura para o mundo. A prostituta é usada para iluminar a vida mofada, retirando os lençóis por cima dos móveis da velha mansão como quem espanta fantasmas adormecidos. Entretanto, é envolta por um desses mesmos lençóis brancos, transformando-se ela própria numa assombração salpicada de sangue, que ela encontra a morte.  Irremediavelmente preso à tradição, Herculano tentara incorporar precária e fingidamente a prostituta à normalidade burguesa, mas não isso não era possível. Já Serginho – fruto de uma nova geração menos hipócrita e mais cínica –, consegue se libertar do passado, mas não encontra alternativa além da fuga. Sua abertura para o mundo está no aeroporto.

O casamento: continuidade radical.
Assim como se assemelham os projetos de Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman de despertar os potenciais críticos da história de Os Inconfidentes (1972) e do romance São Bernardo (1971) com a proteção da respeitabilidade inatacável dos clássicos e do drama de época, também encontramos intenções próximas nas leituras de derivação tropicalista dos filmes Toda nudez será castigada (1973) e A Rainha Diaba (1974).
Nos dois filmes, cujas narrativas não são exatamente determinadas temporalmente, Arnaldo Jabor e Antonio Carlos da Fontoura se apropriaram de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos – autores vinculados a ousadias no campo da moral e a pioneirismos na representação do popular – retrabalhando os textos através do exagero pop-tropicalista e da articulação entre o moderno e o arcaico, o realismo e a paródia. Toda nudez será castigada e A Rainha Diaba são espetacularmente coloridos, musicalmente ricos e extraordinariamente violentos. Dinamizando os códigos do filme de gênero, enquanto o primeiro equilibra a sátira com o melodrama, o segundo opta pelo estilo policial, mas ambos compõem tragédias farsescas onde a decadência inevitável dá o tom.
Toda nudez será castigada e A Rainha Diaba foram produzidos com a “qualidade técnica” da produtora de Roberto Farias, chegaram ao grande público e a bilheterias satisfatórias através da distribuidora Ipanema Filmes e agradaram à maioria dos críticos. Embora o cinema brasileiro jamais tenha morrido, os meios de comunicação adoram ressuscitá-lo: em meio às “apelações” e “hermetismos”, eram louvados filmes “bons” e “populares” como os de Jabor e Fontoura que, acompanhados de Vai trabalhar, vagabundo! (1973) ou O amuleto de Ogum (1974), mostravam que o cinema brasileiro podia prosseguir no “rumo certo”. Jabor seguiu esse caminho, mas como enfant terrible, não deixou de buscar a provocação. Conforme a lógica comercial do “não se mexe em time que está ganhando”, o cineasta e seus produtores voltaram a Nelson Rodrigues no filme seguinte, O casamento (1975), adaptação do romance escrito e censurado em 1966.
Mergulho mais radical no “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues, a nova adaptação de Jabor era acompanhada da exacerbação de inúmeros aspectos de seu filme anterior, como a teatralização da narrativa (que em O casamento se assume operística), a representação da decadência da moral burguesa (explicitada no mar de lama das imagens que abrem o filme) e o choque pela violência exposta graficamente.
A articulação de sentidos através da montagem – que em Toda nudez será castigada se dava sobretudo em momentos chaves (como na seqüência final), enquanto antes a câmera dinâmica de Eduardo Escorel era quem ditava o ritmo –, ganha força em O casamento, filme que articula diversos níveis narrativos ao longo das 24 horas entremeadas por flashbacks que antecedem a cerimônia do título. O fotógrafo e câmera Dib Lutfi, praticamente um steady cam humano, confere uma fluidez fantasmagórica às cenas emolduradas por Beethoven que parecem curiosamente atuais para um cinema supostamente pós-moderno, representativo de um planeta globalizado e desterritorializado.
É possível identificar em O casamento aquilo que Ismail Xavier chamou de “anatomia da decadência” no retrato do universo burguês, em que Glorinha (Adriana Prieto) representa o futuro e a continuidade (mas com ruptura) da família do Dr. Sabino (Paulo Porto) através de seu casamento, numa relação que não deixa de guardar semelhanças com o par Herculano e Serginho.
O filme começa com duas questões envolvendo seus personagens: Dr. Sabino é ou não um “homem de bem” (como lhe pediu seu pai no leito de morte); Glorinha, sua filha predileta, é ou não virgem. A constatação e a confissão são seguidas da lembrança de como as coisas se deram.
Em Toda nudez será castigada, Herculano tenta convencer Serginho do seu casamento para “limpar” a prostituta. O filho concorda apenas quando percebe ali a oportunidade de exprimir seu ressentimento, destruindo o que o pai tentava precariamente construir. Em O casamento, o pai igualmente deseja o matrimônio – dessa vez o da filha – como o “ideal” a ser alcançado. O casamento representa um sonho (ou um fantasma) simbolizado pelo vestido de noiva a flutuar etereamente na sala de casa. “O casamento é o mais importante”, afirma fervorosamente Sabino, mesmo que isso vá contra seus desejos mais íntimos: a paixão pela filha, que ele assume depois de superar todas as hesitações que acompanham seus receios e pudores, mas que a angelical Glorinha, misto de ingenuidade e cinismo, recusa com horror.
A cerimônia do título é o clímax do filme, o ponto máximo para o Dr. Sabino, quando ele faz o que é “certo” para um homem de bem, não o que ele “perversamente” deseja. Finalmente ele pode expiar suas culpas, “assumir sua lepra”, na contradição que o final reserva: é um homem de bem incriminado por assassinato; tem a consciência limpa assumindo a culpa justamente por aquilo que não fez; torna-se finalmente um homem livre quando algemado.
Há novamente um descompasso entre as duas gerações. Apesar das dúvidas, Glorinha finalmente aceita o que a família lhe reserva: o casamento com o noivo de quem não gosta, o vestido branco não sendo mais virgem. As novas gerações surpreendem as mais velhas não pelos caminhos que escolhem (a viagem de Serginho, o casamento de Glorinha, opções sempre desejadas pelos seus pais), mas pela desenvoltura com que o fazem. Assim como Serginho se vinga contra Herculano, Geni e toda a família sem olhar para trás (a não ser para humilhar com crueldade a madrasta e amante), Glorinha corre de Sabino na praia deixando-o gritar sozinho – mas corre para casa, para o casamento no dia seguinte.
A oposição de classe reaparece em O casamento, sobretudo através de Noêmia (Camila Amado), funcionária de Sabino, utilizada quando interessa e abandonada quando não é mais útil. Num quadro de total decadência e tragédia, assim como Geni, a secretária tem esperança, o que se revela, na ordem das coisas, uma completa ingenuidade. Como a prostituta, seu final é a morte.
O “povo” apontado por Carlinhos em seu turismo pelo subúrbio de ruínas e destroços não é poupado do retrato cruel. O destino dos três jovens da zona sul é o casarão do enfermeiro homossexual Zé Honório (André Valli). Limpo no passado, o lugar surge coberto de teias de aranhas, numa crítica feroz à “modernização conservadora” em que enceradeira, liquidificador e rádio se misturam a móveis, esculturas e tapeçarias cheirando a mofo.
O tom documental antes presente nas imagens do bordel de Toda nudez será castigada transforma-se em O casamento em imagens documentárias em preto e branco (mais verdadeiro que o colorido) no início e no final do filme. Amplia-se o teatro, mas reafirma-se o real como o palco onde o espetáculo se desenrola. No primeiro filme, Jabor abriu mão dos personagens do médico e do padre (enquanto os censores eliminaram o delegado), não restando nenhuma instância além dos locais onde se desenrolavam o drama principal. Na segunda investida do cineasta pelo universo de Nelson Rodrigues, o palco se abre para o mundo exterior, inclusive pelos repórteres e fotógrafos que acompanham o transe final e público de Sabino.
Se na passagem para os anos 1970 certa parcela do cinema brasileiro insistiu em painéis nacionais – como os malsucedidos comercialmente Pindorama ou Os herdeiros (1969) – enquanto havia simultaneamente o deslocamento na direção do “drama de família” – como os sucessos de bilheteria Copacabana me engana (1969) ou Matou a família e foi ao cinema (1969) –, Jabor busca em O casamento uma espécie de síntese. Colocando à vista o que Nelson Rodrigues só colocou no papel – em prosa, destinada à leitura privada, não em drama, destinado à exposição coletiva – o cineasta constrói um retrato caótico e trágico do país como uma ópera familiar.
O desejo pelo choque através da violência insuportável – característica de diversos filmes marginais e retrabalhada com moldura pop em A Rainha Diaba – está presente em O casamento, assim como também em alguns filmes policiais de Antônio Calmon, companheiro de Jabor da “terceira geração do Cinema Novo” que parece ter seguido um dos atalhos da trilha aberta pelo filme de Fontoura. [4]
Pela sensibilidade e perspicácia em reavaliar as novas configurações do Brasil e do mundo, parece ainda significativo que Arnaldo Jabor e Antônio Calmon tenham sido os cineastas oriundos do Cinema Novo que alcançaram maior expressão no cinema carioca dos anos 1980 – com a representação dos sonhos e desejos da juventude em um novo mundo em Eu sei que vou te amar (1984) e Menino do Rio (1982). Da mesma forma, foram aqueles que, de sua geração, conseguiram uma inserção mais significativa no universo televisivo, particularmente a Rede Globo, quando a crise do cinema brasileiro se acentuou.
Por fim, é importante ressaltar que a análise de O casamento foi prejudicada pela visão da cópia lançada em dvd remontada pelo cineasta – uma versão “suavizada”, em suas palavras. Embora trate-se de um direito inapelável do artista ter controle sobre sua obra, a praticamente total impossibilidade de acesso ao filme conforme foi concebido e lançado comercialmente em 1975 parece revelar um traço de prepotência no trato com o próprio passado, possivelmente característico de parte de uma geração que hoje dita os rumos do país.



Rafael de Luna Freire

Coordenador do Setor de Documentação da Cinemateca do MAM, doutorando do programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da UFF e organizador do Cineclube Tela Brasilis.



[1] Possuindo resquícios de moral no meio da sordidez e gotas de esperança em meio ao sofrimento, Geni se insere numa linhagem cujo marco é a Neusa Sueli de Navalha na carne – peça (1967) e filme (1970) – e que se fundiria com outro personagem trágico, o do travesti, na igualmente Geni de Ópera do malandro – peça (1980) e filme (1986). Num equilíbrio entre o realismo e a paródia, a prostituta de Toda nudez será castigada se encontra com a Isa (Odete Lara) de A Rainha Diaba (1974), mas já sinaliza intenções que desaguariam em Iracema: uma transa amazônica (1976).
[2] XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
[3] Ultrapassado pela revolução sexual e em sintonia com a dimensão paródica que permeia a moldura melodramática, a adaptação de Jabor confere à fuga de Serginho com o ladrão boliviano um caráter anedótico quase “pornochanchadesco”, próximo, por exemplo, à piada final do episódio de Braz Chediak em Os mansos (1973).
[4] Refiro-me à presença de personagens ambivalentes como a Leninha (Denise Dumont) de Terror e êxtase (1979), jovem burguesa que oscila entre seu mundo e a marginalidade, ou da exacerbação sedutora da violência em Eu matei Lúcio Flávio (1979), principalmente na cena do assalto à farmácia. Curiosamente, a aliança de Calmon com o astro e produtor Jece Valadão se encerrou após o fracasso de O torturador (1980), que parece ser talvez o Pindorama que o cineasta ainda não tivesse feito.

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